quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Essas “ditaduras amigas”

Ditadura, na Tunísia? No Egito, uma ditadura? Vendo as mídias se regozijando com a palavra “ditadura” aplicada à Tunísia de Ben Ali e ao Egito de Mubarak, devemos nos perguntar se de fato entendemos ou lemos bem. Não insistiram durante décadas, estas mesmas mídias e estes mesmos jornalistas que esses dois “países amigos” eram “Estados moderados”?


Ditadura, na Tunísia? No Egito, uma ditadura? Vendo as mídias se regozijando com a palavra “ditadura” aplicada à Tunísia de Ben Ali e ao Egito de Mubarak, devemos nos perguntar se de fato entendemos ou lemos bem. Não insistiram durante décadas, estas mesmas mídias e estes mesmos jornalistas que esses dois “países amigos” eram “Estados moderados”? A horrível palavra “ditadura” não estava exclusivamente reservada, no mundo árabe muçulmano (depois da destruição da “espantosa tirania de Saddam Hussein no Iraque) somente ao regime iraniano? Como? Havia então outras ditaduras na região? E as mídias de nossa exemplar democracia ocultaram isto de nós?

Eis aqui, em todo caso, um primeiro abrir de olhos que devemos ao rebelde povo tunisiano. Sua prodigiosa vitória liberou os europeus da “retórica hipócrita e de ocultamento” em vigor nas nossas relações exteriores e em nossas mídias. Obrigados a retirar a máscara, simulam descobrir o que sabíamos desde algum tempo (1), que as “ditaduras amigas” não são mais do que isto: regimes de opressão. Sobre o assunto, os meios de comunicação não fizeram outra coisa que não seguir a “linha oficial”: fechar os olhos ou olhar para o outro lado confirmando a idéia de que a imprensa não é livre salvo em relação com os débeis e com as pessoas isoladas. Por acaso Nicolas Sarkozy não teve a serenidade para assegurar que na Tunísia “havia um desespero, um sofrimento, um sentimento de afogamento que há de se reconhecer que não havíamos apreciado em sua justa proporção”, no que diz respeito ao sistema mafioso do clã Ben Ali-Trabelsi?

“Não havíamos apreciado em sua justa proporção...” Em 23 anos... Apesar de contar ali com serviços diplomáticos mais prolíficos que os de qualquer outro país... Apesar de a colaboração com todos os setores da segurança (polícia civil, polícia militar, serviço de inteligência...) (2). Apesar da permanência regular de altos responsáveis políticos e midiáticos que estabeleciam ali tranquilamente suas casas de verão... Apesar da existência, na França, de dirigentes exilados da oposição tunisiana, mantidos à margem como doentes pelas autoridades francesas e com acesso proibido durante décadas aos grandes meios de comunicação...

Democracia desastrosa

Na realidade, estes regimes autoritários foram (e seguem sendo) complacentemente protegidos pelas democracias européias, desprezando seus próprios valores, sob o pretexto de que constituem uma defesa contra o islamismo radical (3). O mesmo argumento cínico usado pelo Ocidente durante a Guerra Fria, para apoiar ditaduras militares na Europa (Espanha, Portugal, Grécia, Turquia) e na América Latina pretendendo impedir a chegada do comunismo ao poder.

Que formidável lição dão as sociedades árabes revolucionárias àqueles que na Europa os descreviam com termos maniqueístas, ou seja, como massas dóceis submetidas a príncipes orientais corruptos ou como multidões histéricas possuídas pelo fanatismo religioso! E eis aqui que de repente elas surgem nas telas de nossos computadores ou de nossos televisores (cf.: o trabalho admirável da Al-Jazeera), preocupadas com o progresso social, nada obcecadas pela questão religiosa, sedentas por liberdade, sobrecarregadas pela corrupção, detestando as desigualdades e clamando democracia para todos, sem exclusões.

Longe das caricaturas binárias, estes povos não constituem de modo algum uma espécie de “exceção árabe”, mas se assemelham em suas aspirações políticas ao resto das ilustradas sociedades urbanas modernas. Um terço dos tunisianos e quase um quarto dos egípcios navegam regularmente pela internet. Como afirma Moulay Hicham El Alaoui: “Os novos movimentos já não estão marcados por velhos antagonismos como anti-imperialismo, anti-colonialismo ou anti-laicismo. As manifestações da Tunísia ou do Cairo têm estado desprovidas de todo símbolo religioso. Constituem uma ruptura geracional que refuta a tese do excepcionalismo árabe. Ademais, são as novas metodologias da comunicação da internet que incentivam estes movimentos. Eles propõem uma nova versão da sociedade civil na qual a recusa ao autoritarismo caminha de mãos dadas com a recusa à corrupção (4)”.

Especialmente graças às redes sociais digitais, as sociedades tanto da Tunísia quanto do Egito se mobilizaram com grande rapidez e puderam desestabilizar o poder em tempo recorde. Mesmo antes que os movimentos tivessem a oportunidade de “amadurecer” e de favorecer o surgimento de novos dirigentes dentro deles. É uma das raras ocasiões na qual sem líderes, sem organização dirigente e sem programa, a simples dinâmica da exasperação das massas bastou para conseguir o triunfo de uma revolução. Trata-se de um movimento frágil e sem dúvida as potências já estarão trabalhando, especialmente no Egito, para que “tudo se modifique sem que nada mude” segundo o velho adágio de Il Gattopardo. Estes povos que conquistaram sua liberdade devem relembrar a advertência de Balzac, “Se matará a imprensa como se mata a um povo, dando-lhe a liberdade” (5). Nas “democracias vigiadas” é muito mais fácil domesticar legitimamente um povo do que nas antigas ditaduras. Porém, isto não justifica sua manutenção. Nem deve amortecer o ardor de derrubar uma tirania.

O naufrágio da ditadura tunisiana foi tão veloz que os demais povos Magrebinos e árabes chegaram à conclusão de que estas autocracias – as mais velhas do mundo – estavam, na realidade, profundamente corroídas e não eram por tanto mais que “tigres de papel”. Esta demonstração se verificou também no Egito.

Daí este impressionante levante dos povos árabes, que leva a pensar inevitavelmente no grande florescimento das revoluções européias de 1848, na Jordânia, no Iêmen, na Argélia, Síria, Arábia Saudita, no Sudão e também em Marrocos.

Neste último país, de uma monarquia absoluta, no qual o resultado das “eleições” (sempre fraudado) sempre a elege soberana, que designa segundo sua vontade os chamados ministros “da soberania”, algumas tantas dezenas de famílias próximas ao trono que continuam acumulando a maioria das riquezas (6).
Os documentos difundidos pelo Wikileaks revelaram que a corrupção chega a níveis de indecência imensos, maiores do que os da Tunísia de Bem Ali, e que as redes mafiosas seriam todas originadas no Palácio. Um país no qual a prática da tortura é generalizada e o amordaçamento da imprensa é permanente.
No entanto, como na Tunísia de Ben Ali, esta “ditadura amiga” se beneficia da grande indulgência dos meios de comunicação e da maior parte de nossos responsáveis políticos (7), os quais minimizam os sinais do começo de um “contágio” da rebelião. Quatro pessoas se imolaram ateando fogo em si mesmas. Foram produzidas manifestações de solidariedade com os rebeldes da Tunísia e do Egito em Tanger, em Fez e em Rabat (8). Acossadas pelo medo as autoridades decidiram subsidiar preventivamente os artigos de primeira necessidade para evitar as “rebeliões do pão”. Importantes contingentes de tropas do Saara Ocidental teriam sido deslocadas aceleradamente para Rabat e Casablanca. O Rei Mohamed VI e alguns colaboradores teriam partido para a França em 29 de janeiro para consultar experts em ordem pública do Ministro Francês do Interior (9).

Ainda que as autoridades desmintam as duas últimas informações, está claro que a sociedade marroquina está seguindo os acontecimentos da Tunísia e do Egito com excitação. Preparados para se unir ao impulso de fervor revolucionário e quebrar de uma vez por todas as travas feudais. E a cobrar contas de todos aqueles que, na Europa, foram cúmplices durante décadas destas “ditaduras amigas”

Por Ignacio Ramonet
[07 de fevereiro de 2011 - 12h09]

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