terça-feira, 1 de março de 2011

Do mundo árabe à América Latina



Não há nos levantes populares árabes nem traço de socialismo, mas tampouco de islamismo e nem – mais importante – de sedução eurocêntrica: trata-se ao mesmo tempo de uma revolta econômica e de uma revolução democrática, nacionalista e anticolonial, o que abre prontamente, quarenta anos depois de sua derrota, uma inesperada oportunidade para as esquerdas socialistas e pan-arabistas da região.

Por Santiago Alba Rico e Alma Allende
                                                                                                          
                                                                                                    [27 de fevereiro de 2011 - 20h35]


Temos a impressão de que um grande processo emancipatório pode ver-se abortado pela implacável ferocidade de Kadafi, pela intervenção estadunidense e pela pouca clarividência da América Latina. A situação poderia ser descrita assim: em uma zona do mundo ligada novamente por fortes solidariedades internas, da qual somente se esperava letargia ou fanatismo, surgiu uma onda de levantes populares que ameaça fazer cair, um após outro, todos os aliados das potências ocidentais na região. Independentemente das muitas diferenças locais, estes levantes têm algo em comum que, certamente, os distingue radicalmente das “revoluções” rosadas e laranjas promovidas pelo capitalismo na órbita ex-soviética: demandam democracia, sim, mas longe de estarem fascinadas pela Europa e pelos EUA, são depositárias de uma longa, arraigada e radical tradição antiimperialista forjada em torno da Palestina e do Iraque. Não há nos levantes populares árabes nem traço de socialismo, mas tampouco de islamismo e nem – mais importante – de sedução eurocêntrica: trata-se ao mesmo tempo de uma revolta econômica e de uma revolução democrática, nacionalista e anticolonial, o que abre prontamente, quarenta anos depois de sua derrota, uma inesperada oportunidade para as esquerdas socialistas e pan-arabistas da região.

A América Latina progressista, cujos pioneiros processos emancipatórios constituem a esperança do antiimperialismo mundial, deveria apoiar incondicionalmente o mundo árabe neste momento, se adiantando à estratégia das potências ocidentais, sobrecarregadas pelos acontecimentos e às quais Kadafi está dando a oportunidade de um retorno – quiçá militar, mas, sobretudo propagandístico – como paladino dos direitos humanos e da democracia.  Este discurso é pouco crível nesta zona do mundo, onde Fidel e Chávez gozam de um enorme crédito popular, mas se a América Latina se alinhar, ativa ou passivamente, com o tirano, não somente os contagiantes avanços populares, que lambem a Europa e também se moveram até Wisconsin, estarão totalmente detidos, além de que isto possivelmente produzirá uma nova fratura no campo antiimperialista que os EUA, sempre vigilantes, relojoeiros do mundo, aproveitarão para recuperar terreno perdido. Algo disto pode já estar ocorrendo como resultado de uma combinação de desconhecimento e antiimperialismo esquemático e sumário. Os povos árabes, que voltam à cena da história, necessitam o apoio de seus irmãos latino-americanos, mas é, antes de tudo, a revolução mundial de forças que não pode se permitir uma vacilação por parte de Cuba e Venezuela sem que Cuba e Venezuela sofram também as conseqüências e sofram com eles a América Latina e as esperanças de transformação em nível mundial.

Podemos alegar que pouco sabemos sobre o que ocorre na Líbia e suspeitar das sentenças ocidentais, midiáticas e institucionais, dos últimos dias. Podemos nos contentar com isso. Os imperialistas são mais inteligentes. Eles, que têm muitos interesses concretos na região, defenderam seus ditadores até o fim, mas quando compreenderam que eram insustentáveis, os deixaram cair e escolheram outra estratégia: apoiar processos democráticos controlados, selecionar minorias pós-modernas como motor de transformações limitadas e implantar sem pudores, cientes de que a memória é curta e os reflexos da esquerda são bastante imediatos, um novo arco-íris de retórica democrática. Devemos nos opor a qualquer intervenção ocidental, mas não creio, sinceramente, que a OTAN vai invadir a Líbia; o que me parece é que esta ameaça, apenas apontada, tem efeito de pulverizar e espalhar o campo antiimperialista, e isto até um ponto em que nos façam esquecer algo que, este sim, devemos saber: quem é Kadafi. Esquecer isto pode produzir ao menos três efeitos terríveis: romper os laços com os movimentos populares árabes, legitimar as acusações contra Venezuela e Cuba e “represtigiar” o já muito danificado discurso democrático imperialista. Todo um triunfo, sem dúvida, para os interesses imperialistas na região.

Kadafi tem sido, durante os últimos dez anos, um grande amigo da União Européia e dos EUA e seus ditadores aliados na região. Basta recordar as incendiárias declarações de apoio do “Calígula” líbio ao deposto Ben Ali, às milícias do qual Kadafi muito provavelmente proporcionou armas e dinheiro nos dias posteriores a 14 de janeiro. Basta recordar também a dócil colaboração de Kadafi com os EUA no âmbito da chamada “guerra antiterrorista”. A colaboração política esteve sempre acompanhada de estreitos vínculos econômicos com a UE, incluindo a Espanha: a venda de petróleo à Alemanha, Itália, França e EUA foi paralela à entrada das grandes companhias ocidentais na Líbia (a espanhola Repsol, a britânica British Petroleum, a francesa Total, a italiana ENI ou a austríaca OM), sem falar nos suculentos contratos das construtoras européias e espanholas em Trípoli. Ademais, a França e os EUA não deixaram de proporcionar armas à Líbia para que agora mate até em ataques aéreos seu próprio povo, seguindo o exemplo da Itália imperial de 1911. Em 2008 a ex-Secretária de Estado, Condoleeza Rice, deixou isto muito claro: “Líbia e Estados Unidos partilham interesses permanentes: a cooperação na luta contra o terrorismo, o comércio, a proliferação nuclear, África, os direitos humanos e a democracia”.

Quando Kadafi visitou a França em dezembro de 2007, Ayman El-Kayman resumiu a situação em um parágrafo que reproduzo aqui: “Há quase dez anos, Kadafi deixou de ser para o Ocidente democrático um indivíduo pouco recomendável: para ser retirado da lista estadunidense de Estados terroristas, teve que reconhecer a responsabilidade no atentado de Lockerbie; para normalizar suas relações com o Reino Unido, deu os nomes de todos os republicanos irlandeses que haviam sido treinados na Líbia; para normalizá-las com os Estados Unidos, deu toda a informação que tinha sobre líbios suspeitos de participar no jihad junto com Bin Laden e renunciou a suas “armas de destruição em massa”, além de pedir à Síria que fizesse o mesmo; para normalizar suas relações com a UE, se transformou em guardiã dos campos de concentração onde estão presos milhares de africanos que se dirigiam à Europa; para normalizar suas relações com seu sinistro vizinho Ben Ali, entregou a ele opositores que estavam refugiados na Líbia”.

Como se vê, Kadafi não é nem um revolucionário nem um aliado, sequer tático, dos revolucionários do mundo. Em 2008 Fidel e Chávez (junto ao Mercosul) denunciaram justamente a chamada “política da vergonha” europeia que reforçava a já bastante severa perseguição na Europa à imigração ilegal. De todos os crimes de Kadafi, talvez o mais grave e o menos conhecido seja sua cumplicidade na política migratória da UE, particularmente italiana, como carrasco de imigrantes africanos.  Quem quiser uma ampla gama de informações sobre o tema pode ler “Il Mare di Mezzo” do corajoso jornalista Gabriele Del Grande, ou acessar a sua página na web, Fortresseurope, onde foram recolhidos e organizados alguns documentos chocantes. Já em 2006, o Human Rights Watch e Afvic denunciavam as prisões arbitrárias e torturas nos centros de detenção líbios financiados pela Itália. O acordo Berlusconi-Kadafi, de 2003, pode ser lido na íntegra na página de Gabriele Del Grande e suas conseqüências se resumem sucinta e dolorosamente ao grito de Farah Anam, fugitiva somaliana dos campos da morte líbios: “Prefiro morrer no mar a regressar à Líbia”. Apesar das denúncias que versam sobre verdadeiras práticas de extermínio – ou precisamente em função delas, que demonstram a eficácia de Kadafi como guardião da Europa – a Comissão Européia definiu em outubro um “programa de cooperação” para a “gestão dos fluxos migratórios” e “controle das fronteiras”, valido até 2013 e acompanhado da entrega à Líbia de 50 milhões de euros.

A relação da Europa com Kadafi beira a submissão. Berlusconi, Sarkozy, Zapatero e Blair o receberam com abraços em 2007 e o próprio Zapatero o visitou em Trípoli em 2010. Até mesmo o rei Juan Carlos se deslocou para Trípoli em janeiro de 2009 para promover as empresas espanholas. Por outro lado, a UE não hesitou em se humilhar e desculpar publicamente em 27 de março de 2010 através do então ministro espanhol de Assuntos Exteriores, Miguel Angel Moratinos, por ter proibido 188 cidadãos líbios de entrarem na Europa em função do conflito entre Suíça e Líbia causado pela detenção de um filho de Kadafi em Genebra acusado de maus tratos a seus funcionários domésticos. Ainda mais: a UE não emitiu nem um mínimo protesto quando Kadafi adotou represálias econômicas, comerciais e humanas contra a Suíça nem quando ele efetuou um chamamento à guerra santa contra o país, nem mesmo quando ele declarou publicamente  seu desejo de que a Suíça fosse varrida do mapa.

E se agora estes amigos imperialistas de Kadafi – que vêem como o mundo árabe se vira sem sua intervenção – condenam a ditadura líbia e falam em democracia, então nós vacilamos. Aplicamos os modelos universais da luta antiimperialista, com suas teorias de conspiração e sua paradoxal desconfiança dos povos, e pedimos tempo para que se dissolva a nuvem de poeira levantada pelas bombas lançadas do ar – a fim de estarmos seguros de que debaixo da nuvem não há um cadáver da CIA. Isso quando não apoiamos diretamente, como o governo da Nicarágua, um criminoso cujo contato mais leve somente pode manchar para sempre qualquer um que se reivindique de esquerda ou progressista. Não é a OTAN quem está bombardeando os líbios, mas sim Kadafi. “Fuzil contra fuzil” é a canção da revolução; “míssil contra civil” é algo que não podemos aceitar e que, antes de nos questionarmos, devemos condenar com toda a energia e indignação. Mas questionemo-nos também. Porque se nos fazemos perguntas, as respostas que tivermos – por poucas que sejam – demonstram de que lado devem estar neste momento os revolucionários do mundo.

Esperamos que Kadafi caia – melhor hoje do que amanhã – e a América Latina compreenda que o que ocorre neste momento no mundo árabe tem a ver não com os planos maquiavélicos da UE e dos EUA (que, sem dúvida, manobram nos bastidores), mas sim com os processos abertos na Nossa América, a de todos, a da ALBA e da dignidade, desde o início dos anos 90, seguindo a estrela da Cuba de 1958. A oportunidade é grande e pode ser a última para reverter definitivamente a atual relação de forças e isolar as potências imperialistas em um novo âmbito global. Não caiamos tão facilmente em uma armadilha. Não menosprezemos os árabes. Não são sindicalistas, não, mas nos últimos dois meses, de maneira inesperada, deixaram nua a hipocrisia da UE e dos EUA, expressaram seu desejo de uma democracia autêntica, longe de qualquer tutela colonial, e abriram um espaço para colocar em dificuldades, partindo da esquerda, as tentativas de recuperação, também territorial, do capitalismo. É a América Latina da ALBA, de Che e Playa Girón, cujo prestígio nesta região estava intacto até ontem, quem tem que apoiar o processo antes que o relojoeiro do mundo volte a fazer com que as engrenagens girem para trás e a seu favor. Os países capitalistas têm “interesses”, os socialistas somente “limites”. Muitos destes “interesses” estavam com Kadafi, mas nenhum destes “limites” tem a ver com ele. É um criminoso, além de ser um estorvo. Por favor, companheiros revolucionários da América Latina, os companheiros revolucionários do mundo árabe estão pedindo para que não o apóiem.

Publicado por Rebelion

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