terça-feira, 15 de março de 2011

Os desastres japoneses

Os desastres japoneses
Não podemos atribuir nem à ação divina nem à ação humana os movimentos das placas tectônicas na costa de Honshu. Mas pode acontecer que a pior parte deste desastre seja causada pelas mãos do homem. Quando alguns seres humanos, em sua busca por lucro e prosperidade, lidam com o meio ambiente de maneira estúpida, nós realmente devemos responsabilizá-los.


Por Gary Leupp


[15 de março de 2011 - 16h44]
Apelidada Mori no miyako, “a capital florestada”. Ou talvez nós pudéssemos chamá-la – Sendai – a “Kyoto da Floresta”. O castelo do Lord Date Masamune, construído no século XVII, é chamado de Aoba-jo ou “Castelho das Folhas Verdes” e a principal rua do vilarejo do castelo é chamada Avenida das Folhas Verdes. Quando eu estive lá durante uma semana em 1986 – uma visita prolongada em função dos tufões que impediam viagens ferroviárias – fui pego de surpresa pelo verde que tanto falta na maioria das cidades japonesas, regado pelo Rio Hirose. Eu me apaixonei pelo lugar, comparável em alguns aspectos a Sapporo, onde conheci minha esposa.
Eu sempre associarei, como o fazem muitos japoneses, Sendai com a canção Aobajo koi uta, um canto lamurioso que começa com este verso tão representativo da arte japonesa, a qual sempre encontra uma beleza mordaz na efemeridade da vida:
“Hirosegawa nagareru kishibe
Omoide wa kaerazu
Hayase odoru hikari ni
Yureteita kimi no hitomi
Toki wa meguri
Mata natsu ga kite
Ano hi to onaji nagare no kishi
Seoto yukashiki
Mori no miyako
Ano hito wa mo inai”
“À margem do corrente Rio Hirose
Recordo-me do que não retornará.
No esplendor dançante das corredeiras
Vejo seus olhos transbordando em lágrimas.
O tempo vai.
O verão vem novamente.
Como naquele dia nas corredeiras entre as margens
O agradável som das corredeiras
Nesta cidade madeirada.
Esta pessoa não existe mais”
Eu me pergunto se Sendai ainda existe. “Muitas áreas da cidade”, de acordo com a CNN, “simplesmente sumiram – lama e destroços habitando agora uma área onde antes existia uma fileira de casas; um veículo de cabeça para baixo entre os galhos de árvore. Uma escola, com 450 pessoas dentro quando o tsunami a atingiu, permaneceu de pé com suas portas arrombadas e uma confusão de mobília – além de um caminhão – em seus corredores. Alguns professores e estudantes conseguiram escapar do prédio, mas as autoridades dizem que outros não tiveram a mesma sorte”.
Localizada somente a 100 milhas a oeste do epicentro do terremoto de sexta-feira, Sendai sofreu mais dano do que qualquer outra grande cidade japonesa. Refere-se ao bairro de Futaki como “marco zero” do desastre. Sendai, no distrito de Miyagi, é a mais populosa cidade na vasta região Nordeste. Havia uma população de um milhão de pessoas antes do tremor e do tsunami por ele iniciado. Acredita-se que a cidade de pescaria próxima, Minamisanriku, tenha perdido cerca de 10 mil dos seus 17 mil moradores. Kasennuma, também em Miyagi, uma cidade de 74 mil habitantes, está totalmente submersa. Cidades e vilarejos inteiros foram arrastados para o mar. O número oficial de mortes permanece relativamente baixo, em cerca de 10 mil, mas o número de desaparecidos é gigantesco. Quantos Sendai terá perdido?
Primeiro houve o tremor violento, que durou mais de três minutos. Enquanto o tremor começava, as pessoas devem ter pensado, “Preciso desligar o gás”. Qualquer criança de primário sabe disso. Em seguida: “Preocupar-me com um tsunami”.
Mas não houve tempo. Dentro de minutos, as casas pegavam fogo, e o nível do mar caiu dramaticamente, só para se erguer ferozmente. A parede de água atacou a cidade, submergindo as copas das árvores, e inundou praticamente toda Tohoku, costa do Pacífico. A pista de pouso do aeroporto de Sendai foi inundada. Destroços da cidade ardiam noite adentro enquanto os alarmes de incêndio permaneciam intocados, impossíveis de serem alcançados através das ruas inundadas. A tempestade perfeita de fogo e água, uma catástrofe de proporções bíblicas. Uma tempestade de neve tornou a vida ainda mais miserável para aqueles sem abrigos.
Ao longo da costa a polícia encontrou corpos de 200, 300 pessoas que foram arrastadas para o mar, e depois retornaram à praia. Este foi O Grande – não somente o maior em 140 anos de registros científicos, mas provavelmente dos últimos 1500 anos. E ainda não acabou; tremores secundários de magnitude 6 ou mais continuam acontecendo nas últimas horas.
Eu me compadeço pelo Japão, onde passei seis anos. O terremoto de sexta-feira impactou uma grande parte do país. Minha sogra em Sapporo, na ilha Hokkaido, a norte, sem dúvida sentiu o impacto. Ela disse à minha esposa (que só conseguiu falar com ela na terceira tentativa, tendo em vista que várias linhas de telefone haviam caído), que ela pensou ser só mais um tremor rotineiro. (Na verdade, ele teve uma magnitude 6.8 em Sapporo). Ela estava assistindo TV no momento e viu que um terremoto tinha atingido Tóquio, mais de 500 milha a sul. Que estranha coincidência, ela pensou, que estejam acontecendo tremores em Sapporo e Tóquio ao mesmo tempo. Ela não se deu contra de que eram todos o mesmo terremoto, o qual foi de fato sentido tão longe quanto Pequim.
Como a maioria dos japoneses, minha sogra tem uma atitude bastante realista quanto a terremotos. Eles sãoshikataganai koto, algo sobre o qual nada se pode fazer. Deve-se, então, lidar com eles racionalmente (até mesmo quando usa para explicá-los referências ao Deus dos terremotos, Nai no kami, ou o lendário bagre gigantes Namazu, que vive nas profundezas do oceano e se debate violentamente quando não contido).
Ela acredita que os terremotos são a punição divina ao Japão pela corrupção política e pelo sectarismo. Mas a religiosidade e o fatalismo desta forte e brava senhora de 78 anos de idade coexistem com uma enorme praticidade.
Sua casa moderna e pré-fabricada é programada para que, caso haja um tremor, os armários da cozinha se tranquem automaticamente para que a louça não caia. E o aquecedor é desligado. Ela está tranquila, como está a maioria dos japoneses quando se trata de terremotos. Mas este não foi um terremoto normal.
Eu lamento por todo o país, mas por Sendai especificamente – Sendai com seu dialeto único que para mim foi incompreensível, Sendai com suas mulheres excepcionalmente belas, Sendai com sua rica história. A elite dos samurais da era Date foram, durante algum tempo, aliados das missões Católicas Romanas, protegendo-os até mesmo quando o poder central perseguiu os cristãos. Nos anos de 1610, Date Masamune mandou emissários ao Vaticano para estabelecer ligações; eles viajaram através do Pacífico até o México e depois logo em seguida através do Atlântico. (Em 1617, sete dos samurais membros da missão decidiram não retornar para casa, e se instalaram numa vila próxima a Sevilha, onde hoje centenas de pessoas têm o sobrenome “Japon”).
Os enviados retornaram com cartas, pinturas e mapas, preservados no Museu da Cidade de Sendai. Ao menos, espero que estejam. E espero que o monumento ao grande escritor chinês Lu Xun, que estudou na cidade de 1904 a 1906, não tenha sido danificado.
Os japoneses conhecem Sendai como o lar da Universidade de Tohoku, uma das melhores universidades públicas do país. Eles também sabem do Festival Tanabata, que acontece na cidade no inicio de Agosto, todos os anos. A população vibra ao ver metade da população de Tohoku se juntar para celebrar o mito chinês do amor da Princesa Tecelã (a estrela Vega) e do Vaqueiro (a estrela Altair). O pai da princesa, uma divindade muito poderosa, presidindo sobre a Via Láctea, permite que ela conheça e se case com o vaqueiro. Mas ele logo se enfurece quando ela negligencia seus deveres de tecelã da seda e permite que o gado entre no céu. Ele então os separou, permitindo somente que se encontrem uma vez por ano, quando, com a ajuda de algumas aves, a princesa cruza uma ponte celestial para encontrar seu marido.
O festival de agosto, celebrando esta relação divina, é marcado pela exibição de inúmeras decorações pela cidade, shows espetaculares de fogos de artifício, danças e outros eventos. Pense no festival como um Mardi Gras subjugado, e a Sendai inundada como Nova Orleans depois do furacão. Conseguirá o festival, celebrando a persistência do amor sob as mais desfavoráveis circunstâncias, sobreviver?
A despeito da opinião da minha sogra, não podemos atribuir nem à ação divina nem à ação humana os movimentos das placas tectônicas na costa de Honshu. É simplesmente – shikataganai – como as coisas acontecem no nosso jovem e vigoroso planeta. Mas pode acontecer que a pior parte deste desastre seja causada pelas mãos do homem. Quando alguns seres humanos, em sua busca por lucro e prosperidade, lidam com o meio ambiente de maneira estúpida, nós realmente devemos responsabilizá-los.
Um terço do suprimento de energia do Japão provém de reatores nucleares. Eles estão localizados, em sua maioria, na fina faixa costeira de terra onde a maioria dos japoneses vive, e vulnerável a inevitáveis cataclismas. Quando um terremoto ou erupção vulcânica interrompe o suprimento de energia necessário para bombear a água que esfria o reator, pode haver uma enorme fusão e vazamento de doses letais de radiação. O desastre de Chernobyl de 1986, pelo que se sabe, produziu muitos milhares de mortes por câncer em adição àquelas 57 mortes imediatas por exposição à radiação.
O que acontece se – como agora parece bastante provável – as usinas de energia Dai-ichi e Dai-ni, localizadas na costa de Sendai no distrito de Fukushima, entrarem em colapso? Nós diríamos shikataganai? Ou nós exigimos as cabeças dos financiadores, políticos e donos de corporações que fizeram isto acontecer? Há anos as pesquisas de opinião pública demonstram uma pluralidade de japoneses contrários à energia nuclear. Uma pesquisa de 1999 daAsahi Shinbun mostrou 45% dos japoneses contrários à energia nuclear, com somente 32% apoiando a iniciativa. Em 1996 metade do eleitorado do distrito de Mie tomou posição contra a construção de uma usina nuclear. Mas como mostrou um estudo de opinião pública e energia nuclear no Japão publicado pela Universidade Rice em 2000, uma minoria alegou que a energia nuclear era a chave para a independência energética do Japão. “Estas visões permitiram às autoridades não levar em conta os protestos, entendendo-os como uma ansiedade econômica e egoísta em curto prazo. Eles efetivamente usaram de recompensas financeiras e compensações para amortecer o descontentamento. Pouca atenção foi dada à legitimidade da preocupação pública com segurança”.
Apesar da oposição pública, e a ocorrência de acidentes de nível 2, 3, e 4 (em 1995, 1997, e em 1999 respectivamente), a confiança na energia nuclear aumentou. Em 1990, 9% da eletricidade do Japão era gerada por usinas nucleares, enquanto em 2000 aumentou para 32%.
No filme de 1990, Yume (“Sonhos”), de Akira Kurosawa, baseado nos sonhos do próprio cineasta, há um pequeno curta metragem chamado “Mt. Fuji em Vermelho”. No pesadelo, as pessoas estão fugindo de um terremoto através de uma ponte. Vários deles – uma mulher e suas duas crianças, um homem de terno e um homem em roupas casuais – param para olhar o Mt. Fuji, se dando conta, horrorizados, de que ele está em erupção (isto é perfeitamente concebível. Sua última erupção foi em 1707 e ele entrou em erupção por volta de 75 vezes nos últimos 2.200 anos). Uma enorme nuvem radioativa vermelha aparece no horizonte enquanto imensas colunas de chamas envolvem o monte. O homem de terno percebe que o Monte é cercado por seis usinas atômicas. Eles fogem, mas o homem de terno diz que pelo fato de o Japão ser pequeno, não há escapatória.
A cena corta para um penhasco deserto com detritos espalhados, com vista para o mar. O homem vestido casualmente pergunta aonde foram todas pessoas, e o outro homem diz a ele que todos saltaram na água. O homem então aponta para o céu e explica: “Aquele vermelho é plutônio 239. Uma 1/100.000.000 parte de um grama causa câncer. O amarelo é estrôncio 90. Ele entra em você e causa leucemia. O roxo é césio 137. Ele afeta a reprodução e causa mutações. Ele cria monstruosidades. A estupidez do homem é inacreditável. Radioatividade é invisível. Mas por causa dos seus perigos, eles a coloriram. Mas isso só faz com que você saiba que tipos te matam. O cartão de visita da morte”.
Ele então se curva educadamente, e diz “Osaki ni” (uma frase que literalmente significa “antes de você”), se volta para o penhasco, preparando-se para saltar ao mar. O outro homem tenta segurá-lo, dizendo que a radiação não mata ninguém imediatamente, ao que ouve a resposta “esperar para morrer não é viver”.
A mulher abraçada ao seu bebê chora, e diz “Eles nos disseram que energia nuclear era segura. Os acidentes humanos são o perigo, não a usina nuclear por si. Sem acidentes, sem perigo. Foi isso que eles nos disseram. Mentirosos! Se eles não forem enforcados por isso, eu mesma os matarei!”. O homem que está prestes a pular no mar diz a ela que a radiação os matará por ela. Ele novamente se curva, e confessa que ele é um dos que merece morrer. Ele então se joga do penhasco, e os ventos de radiação envolvem aqueles que ainda estavam vivos.
Terá sido o cenário deste pesadelo só um sonho ruim do grande diretor japonês? Autoridades japonesas reconhecem a possibilidade de uma calamidade ainda maior. O chefe de Gabinete Edano Yukio “assume a possibilidade de uma fusão” em um dos reatores de Fukushima. “Sob o risco de aumentar ainda mais a preocupação pública,” ele diz, “nós não podemos desconsiderar a possibilidade de uma explosão. Se houver uma explosão, no entanto, não haveria nenhum impacto significativo na saúde humana”.
Me lembra a mulher no filme: Não há perigo, Foi isso que eles nos disseram. Eu não quero prever o pior, sabendo tão pouco sobre energia nuclear. Mas obviamente não é segura, quando você tem que evacuar 180.000 de pessoas como precaução, quando trabalhadores têm que se sacrificar para prevenir desastres, e outros países apressam seus cidadãos a saírem do Japão, preocupados com a radiação desde o princípio. Há desde já uma influência significativa na saúde mental dos japoneses que sofrem de ansiedade ao pensarem em explosões ou vazamentos. Enquanto lamentamos os mortos, devemos, para o bem dos vivos, lutar por uma energia verde, segura e sustentável.
Gary Leupp é Professor de História na Universidade Tufts, e tem uma segunda nomeação no Departamento de Religião. Ele é o autor de: Servants, Shophands and Laborers in in the Cities of Tokugawa JapanMale Colors: The Construction of Homosexuality in Tokugawa Japan; e Interracial Intimacy in Japan: Western Men and Japanese Women, 1543-1900Ele é também um colaborador para as crônicas impiedosas do CounterPunch sobre as guerras do Iraque, Afeganistão e Iugoslávia.

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